Este mesmo corpo

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21.09.2017 - 20.10.2017

Arte e Ativismo na América Latina – ano II (2017)

O corpo negro, branco, feminino, masculino, queer, ganha contornos violentos, eloquentes, plásticos, festivos ou mesmo místicos nas proposições de Mariela Scafati, Carlos Martiel e Cristiano Lenhardt, artistas egressos respectivamente de Buenos Aires, Havana e Recife, cidades tão distintas quanto particulares nas suas manifestações culturais e em suas relações com o passado colonial, o presente de instabilidade política e o dia de amanhã repleto de incertezas.

Em pleno século XXI, a plasticidade atribuída aos homens é levada ao limite do suportável, quer na política, quer na natureza, tensionando noções de futuro e desafiando padrões de convivência social, num jogo de poder tão perverso quanto inevitável no curso do processo histórico travado pelo Ocidente em sua épica narrativa de conquista, poder e destruição. Neste contexto, o corpo é a célula mínima e máxima do organismo político, é a um só tempo a instância de resistência, de prazer, de sofrimento e de transcendência, capaz de carregar em si toda a história humana, individual ou coletiva. O corpo é posto à prova, ele demanda e oferta a dimensão do possível e do impossível em batalhas travadas no ritmo diário, desafiando as próprias leis de nossa sobrevivência.

Mariela Scafati, em sua estada no Rio de Janeiro, foi buscar interlocução com outros ativistas – feministas e transfeministas – para desenvolver seu trabalho de serigrafista queer (projeto que vem desenvolvendo há vários anos) em colaboração com o coletivo que está organizando uma manifestação de rua que ganhará corpo ao final do ano na Marcha das Vadias. Em paralelo, apresentou performances e realizou workshops nos quais explorou o corpo (o seu próprio, inclusive) como plataforma pública de comunicação, entendendo a “moda” e as t-shirts como estandartes políticos, como porta-vozes ambulantes de ideias que precisam ser expressadas, rejeitadas ou incorporadas ao debate coletivo.

Em sua ação final – A Vida se Impõe -, a artista apresenta um desfile no qual a palavra está indissociada do corpo, seus movimentos constituindo a articulação de um repertório político que conclama o povo a manifestar-se publicamente. Ao passo em que os figurinos com rabos de cavalo trazem animalidade e dão unidade a homens, mulheres e trans, indistintamente, as idas e vindas dos performers são seguidas pela mudança dos textos que Scafati articula numa espécie de teatro japonês kamishibai através de palavras. Humor e ironia ganham força nos projetos da artista que mobiliza corpos que falam (ou decidem calar-se), corpos que existem e tem de ser reconhecidos em sua integridade, física, estética e política. A vida é a grande experiência política, a convivência a grande estratégia de sobrevivência, e o corpo é uma festa!

Carlos Martiel, artista cubano que vive entre a Ilha e Nova York, vai desenvolver três performances ao longo de sua residência no Brasil. Dando seguimento a uma pesquisa artística que parte de seu próprio corpo para questionar a maneira como nos relacionamos com a raça negra e seu passado de dominação tanto física quanto econômica, na Despina ele também vai investigar a questão indígena em “Lamento Kayapó” – assunto constantemente posto em segundo plano pela agenda política brasileira, até mesmo por aquela de esquerda -, o aspecto servil do trabalho negro em nosso país (em “Fonte de Energia”) e a violência praticada pelo Estado em sua rotina de atentados a essa etnia em nome do combate ao crime e da preservação da ordem social (em “Bala Perdida”).

Suas performances levam ao limite nossa tolerância ao sofrimento, nossa capacidade de observar, lidar e conviver com as atrocidades praticadas rotineiramente no trato das vidas marginais, vulneráveis e ignoradas pelo poder público e por setores afluentes da sociedade. Neste sentido, o aspecto plástico e gráfico de suas ações fazem com que conteúdos sublimados pelo debate coletivo sejam gravados indelevelmente em nossas curtas e seletivas memórias, tornem-se imagens inafastáveis de nossa, no mais das vezes, pueril consciência política, a qual dá corpo a combativos e inflamados discursos não raro à revelia das realidades mais atrozes e violentas a se impor no plano cotidiano dos setores mais vulneráveis do corpo social.

Em “Fonte de Energia”, Martiel torna-se um artista ausente do vernissage do projeto Arte e Ativismo na América Latina, reproduzindo a invisibilidade negra na sociedade brasileira ao assumir o papel de um serviçal que oferece ao público os salgadinhos que celebram a abertura de uma nova exposição. Ao esconder-se do público atrás de uma parede, e deixar que sejam vistas apenas suas mãos negras segurando uma bandeja, o artista nos confronta com a rotineira relação que o país estabelece com os negros, ignorando as individualidades por trás da força de trabalho que move nosso país e o mundo, e tornando o ato de consumo corriqueiro uma atividade a um só tempo perversa e constrangedora.

No contexto das discussões políticas sobre o corpo (ou os corpos) propostas neste segundo ano de Arte e Ativismo na Despina, Cristiano Lenhardt vai girar a chave do discurso político lançando uma nova mirada sobre o corpo, buscando incorporar outros matizes a um debate via de regra unidimensional, que tem na carnalidade dos indivíduos sua expressão mais concreta, tratando do corpo como se essa fosse a única dimensão possível para se falar da vida. Ao pensar os afetos que movem os corpos, e a dimensão espiritual de vidas que existem para muito além da materialidade absoluta, Lenhardt sinaliza a carga emocional que nos mobiliza e orienta nossa busca individual e coletiva por felicidade ou mesmo por um sentido para nossas precárias vidas.

Em uma performance musical que mistura corpos a imagens – “Declaração” – em uma ação coletiva, o artista busca alcançar um “nirvana” espiritual que amalgama corpo e alma, que dá voz aos ímpetos inomináveis da espécie humana, relativizando gêneros e corporalidades, constituindo uma batalha astral tão utópica quanto descolada das coisas terrenas e finitas, commodities manipuláveis pelos mercados, discursos, mídias e outras esferas de poder.

Bernardo José de Souza
curador

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Para saber mais sobre os artistas e a segunda edição do Arte e Ativismo na América Latina, clique aqui.

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por Denise Adams e Frederico Pellachin