O universo heterogêneo dos artistas que participaram desta exposição – que marcou o encerramento do projeto “Iran_Rio Art Connection” – ilustra a diversidade de referências a informar a atual prática artística no Irã.
O cenário contemporâneo daquele país parece construído como uma colcha de retalhos que justapõe a nostalgia pelo passado a um presente aparentemente intransponível, no qual a arte contemporânea e as conexões com o Ocidente funcionam como escape a uma realidade permeada pela guerra e pela violência nos mais diversos níveis.
Neste contexto, Shadi Ghadirian exibiu uma serie de fotografias que, a exemplo das naturezas mortas flamencas, ou mesmo das imagens de revistas de moda atuais, combinaram objetos de fetiche do mundo do consumo ao arsenal bélico presentes no imaginário contemporâneo forjado pela mídia; Amin Aghaei explorou conceitualmente em pintura, vídeo e fotografia o olhar fracionado, embotado e caótico de quem experimenta a guerra; Ali Zanjani, partindo de imagens de arquivo fílmico 16 mm, combinou referências à mulher iraniana de ontem e hoje na série “Gravidez Estática”, um grande painel reapropriacionista que captura a beleza feminina ao passo em que tangencia o contraste entre a representação da mulher velada no Oriente Médio e a exposição dos atributos femininos no Ocidente; já Farnaz Jahanbin fez uso de banners reproduzindo imagens emblemáticas da história antiga e moderna do Irã para fazer intervenções gráficas em pintura com a tradicional caligrafia daquele país, aproximando-se paradoxalmente da street art produzida no Ocidente.
O projeto “Iran_Rio Art Connection” foi uma iniciativa da Despina – Largo das Artes que contou com o suporte da instituição holandesa Prince Claus Fund. Durante o mês de setembro de 2014, quatro representantes de uma nova geração de artistas iranianos ocuparam os ateliês do Largo das Artes para participar de uma residência artística especial no Rio de Janeiro. Uma série de eventos e atividades paralelas aconteceram simultaneamente ao período da residência com o intuito de fortalecer o diálogo inter-cultural e promover o trabalho em rede entre artistas do Oriente Médio e do Brasil.
Na ocasião da abertura da exposição, ocorreu um concerto de música tradicional Persa com a participação da artista Farnaz Jahanbin e do pianista Tomas Gonzaga.
Sobre os artistas
ALI ZANJANI é um artista iraniano que vive entre Dubai e Teerã. Os seus trabalhos refletem sobre a herança sociocultural do Irã ao longo das agitadas transformações políticas que ocorreram no país nos últimos 35 anos. Destaque para uma série bem humorada que inclui registros fotográficos de praticantes da luta livre, o esporte nacional iraniano. O esporte também faz parte de uma outra série, criada com base em fotografias perdidas de um time de basquete feminino, pré-revolução de 1979. Estas imagens de mulheres sem a burca são únicas e estritamente proibidas no regime político atual do Irã. Desde 2011, Ali trabalha com o Museum Salsali de Dubai. Em 2012, teve o seu trabalho selecionado pelo Museu de Arte Contemporânea de Teerã e pela Feira de Arte de Beirute. Atualmente, o artista tem se dedicado a inúmeros projetos, incluindo “Live Moment of Wrestling”, “Life Is Too Short”, “Show Off” e “Just Between Us”.
AMIN AGHAEI nasceu no Irã em 1982 e passou a infância sem uma moradia fixa, deslocando-se com a família pelo país devido à guerra Irã-Iraque (1980-1988). Esta natureza itinerante fez com que ele descobrisse o desenho, que acabou funcionando como uma válvula de escape às condições adversas por que passava. Quando seus pais puderam finalmente se estabelecer num local fixo, Amin conseguiu se concentrar mais em sua arte. Com a repressão política no Irã, começou a desenhar caricaturas e este estilo logo tomou conta de suas pinturas, por isso o tom crítico e humorístico de seus trabalhos. Além do desenho e da pintura, as suas práticas também compreendem escultura e vídeo. A obra de Amin assume um realismo mágico com uma temática sui generis para o Irã, daí este artista ter sido uma escolha unânime do comitê de seleção para este projeto. Para mais informações, visite: http://aminaghaei.com/
FARNAZ JAHANBIN é uma artista iraniana reconhecida internacionalmente, que utiliza a escrita persa e árabe para criar interpretações modernas da antiga arte da caligrafia. Suas pinturas têm formas abstratas e apresentam interpretações mais tradicionais dessas escritas. Farnaz é também uma cantora clássica persa. Como mulher em seu país, ela não tem permissão para se apresentar na frente de um público misto. No Rio de Janeiro, porém, a artista irá fazer uma apresentação pública, como parte da sua residência. Para mais informações, visite: http://www.saatchiart.com/account/profile/175218
SHADI GHADIRIAN é uma importante artista iraniana cujo trabalho já foi exibido em grandes museus e galerias pelo mundo, incluindo o Museu de Belas Artes de Boston e o Los Angeles County Museum of Art. Nascida em 1974 no Teerã, Shadi estudou fotografia na Azad University. A sua prática artística busca refletir sobre as questões que envolvem o tradicional e o moderno na cultura do seu país, principalmente a questão da mulher muçulmana no Irã, um assunto que ainda repercute em todo o mundo. Em “The Qajar Series”, realizada entre 1998 e 2001, Shadi fotografou mulheres vestidas com roupas tradicionais “Qajar”, justapostas com objetos modernos típicos da cultura ocidental, como um “boom box” ou uma lata de Coca-Cola. Já na série “Como todos os dias”, produzida logo depois de se casar, Shadi revela de maneira crítica e irônica a rotina mundana e repetitiva que é reservada à maioria das mulheres em seu país. Estes trabalhos evidenciam a preocupação da artista em destacar o papel das mulheres iranianas dentro de uma sociedade em permanente conflito entre a tradição e a modernidade. Para mais informações, visite: http://shadighadirian.com/
Galeria de fotos
“Iran-Rio Art Connection”
por Bernardo José de Souza
Curador associado ao projeto
Compreender o contexto histórico, cultural e político do Oriente Médio constitui um tremendo desafio a qualquer brasileiro que venha a se debruçar sobre a região, quer seja buscando explicações para os conflitos locais que incidem – senão de maneira direta, ao menos transversa – sobre sua própria realidade ou mesmo tentando estabelecer relações entre repertórios culturais e artísticos aparentemente tão diversos quanto os ocidentais e orientais.
Esta última foi uma de minhas tarefas ao ser convidado pelo Largo das Artes a prestar suporte curatorial à realização de um dos mais relevantes projetos a figurar na agenda carioca em 2014. Mediante financiamento do Prince Claus Fund for Culture and Development, a Iran-Rio Art Connection, ora ocupando aquele espaço, tem como objetivo estreitar laços entre Brasil e Irã, países não apenas distantes geograficamente mas apartados culturalmente por um complexo midiático avesso ao trânsito de informações desprovidas do parti pris ideológico adotado pelos canais hegemônicos de comunicação.
Embora sejamos permanentemente expostos a imagens altamente belicistas provenientes do Oriente Médio, raras vezes somos contemplados com análises éticas e bem fundamentadas sobre os eventos que respingam sobre o conjunto do mundo ocidental. Habituamo-nos a perceber a região como um bloco uno mantido à ferro e fogo pelo fundamentalismo islâmico, largamente responsável por alguns dos mais candentes conflitos ocorridos nos séculos XX e XXI. Na melhor e mais esclarecida das hipóteses, fomos capazes de entender que tais conflitos e intifadas são resultado não apenas dos regimes teocráticos que controlam a região, mas sobretudo do esquartejamento étnico e geográfico promovido por colonizadores europeus durante as duas grandes guerras. As razões para tal, tampouco desconhecemos: virtualmente, infinitas jazidas de gás e petróleo lá localizadas, ambos combustíveis essenciais à manutenção da economia capitalista em seu estágio atual.
Como a tentativa de exaurir esta argumentação se revelaria tarefa desmedida ou mesmo despropositada neste contexto, após brevíssimo preâmbulo de viés sociológico, atenho-me às questões específicas deste inaudito projeto no cenário artístico nacional, via de regra ensimesmado ou atento apenas à produção cultural do eixo hegemônico. Antes disso, porém, vale esclarecer alguns pontos quanto ao modus operandi de tal empreitada.
Após estabelecer contato com instituições e agentes culturais do Irã e arredores, o Largo das Artes elencou nomes representativos da produção artística contemporânea daquele país para participar de uma residência no Rio de Janeiro. Dois deles, Shadi Ghadirian e Farnaz Jarhanbib – escolhidos de antemão por Consuelo Bassanesi e Leila Lak, as idealizadoras do projeto – são artistas relativamente bem estabelecidas, com exposições em espaços de reconhecida importância, como o Victória & Albert Museum e o Los Angeles County Museum of Art, por exemplo; já Ali Zanjani e Amin Aghaei, estão em princípio de suas trajetórias e foram selecionados por um comitê curatorial que incluiu, além de mim, Marta Mestre, Daniela Labra, Miguel Sayad e Ernesto Neto.
O universo heterogêneo de artistas que compõem a presente exposição ilustra a diversidade de motivações e referências a informar a atual prática artística no Irã. Neste sentido, o cenário contemporâneo do país bem pode ser visto como uma colcha de retalhos que justapõe a nostalgia pelo passado a um presente aparentemente intransponível, onde a arte contemporânea e as conexões com o Ocidente funcionam como escape a uma realidade local permeada pela guerra e pela violência nos mais diversos níveis. Por conta disso, a mostra em cartaz é menos fruto de uma curadoria precisa sobre determinado aspecto da produção artística do Irã do que a reunião de obras representativas das preocupações que pautam criativamente esses artistas.
Assim, Shadi Ghadirian exibe a série de fotografias “Zero a Zero”, que remete simultaneamente às clássicas naturezas mortas e às imagens publicitárias de moda – as quais, segundo Harun Farocki, seriam o equivalente contemporâneo daquelas pinturas flamencas –, combinando objetos de fetiche do mundo do consumo ao arsenal bélico presente tanto na realidade cotidiana do mundo islâmico como também no corrente imaginário ocidental. Não por acaso, estes dois mundos – a saber, o do consumo e o da guerra – respondem por ampla fatia das imagens às quais somos expostos diuturnamente pelos mais variados canais de comunicação.
No ateliê da artista, uma outra serie fotográfica pode ser vista: imagens de múltiplos espectros da mulher iraniana vestindo o shador aparecem em diversas combinações da tradicional indumentária associadas aos usuais utensílios domésticos. Embora não seja possível ver a face desta mulher, uma vez que foi substituída por panelas, bules, ferros de passar, luvas etc. – elementos que caracterizam o cotidiano da maioria das mulheres em qualquer parte do globo –, percebemos no jogo de imagens duplas (tal qual um jogo de memória) a construção de uma identidade feminina forjada pelo islamismo em detrimento da individualidade da mulher persa.
Amin Aghaei explora conceitualmente em pintura, vídeo e fotografia o olhar fracionado, embotado e caótico de quem experimenta a guerra de maneira íntima, e por conta disso levanta barreiras visuais ou imaginárias no afã de preservar sua vida interior ou afastar-se da premente realidade de violência e horror em seu entorno. A série em exibição na sala principal do Largo das Artes, “Eu vejo você através da porta”, é fruto do confronto diário com a realidade bélica que dominou boa parte da infância do artista, obrigando-o a viver em permanente deslocamento devido a eminência dos constantes ataques à região do Khuzestan. Esta região, justo na fronteira com o Iraque, é uma das áreas mais ricas em gás e petróleo do Irã, razão pela qual Sadam Hussein deu início a um dos conflitos bélicos mais deletérios, à tentativa de construção de um novo Irã através da não menos obtusa, manipulada e polifônica Revolução Iraniana (1979). Esta revolução tinha por objetivo maior depor o regime despótico (muito embora secular) do Xá para estabelecer uma nova sociedade. O que sucedeu, entretanto, foi a assunção de um novo regime altamente conservador e ditatorial, preservado até os dias de hoje.
Por outro lado, as pinturas reproduzidas em fotografia no ateliê de Amin, espaço contíguo à galeria, revelam o papel libertador exercido pela imaginação humana em situações limite, caracterizadas pelo cerceamento das liberdades individuais e de expressão, impedindo assim a possibilidade de se divisar um futuro alentador. Desta equação perversa, emergem imagens de um passado longínquo porém recorrente, no qual a identidade cultural persa mantinha-se ainda incólume tanto à influência islâmica quanto ocidental que sobreveio nos séculos a seguir. E é justamente nos vilarejos por onde transitou com sua família nos primeiros anos de vida que o artista vai buscar elementos deste tempo perdido. Segundo Amim, a animação em vídeo de uma de suas pinturas – “Vinte e Oito” – também em exibição no Largo das Artes, trata exatamente deste deslocamento em suspensão, isto é, um perpétuo movimento de resultado inócuo, uma vez que faz com que nos deparemos com a impossibilidade de transcender uma realidade política e econômica de tal modo instaurada no Irã ao ponto de apresentar-se como intransponível.
Ali Zanjani, partindo de imagens de arquivo em película 16 mm extraídas de filmetes educativos sobre energia estática, combina referências à representação da mulher antes e após a Revolução Iraniana em sua série Gravidez Estática, uma grande constelação reapropriacionista que captura a beleza feminina ao passo em que tangencia o contraste entre a representação da mulher velada no atual Irã e a superexposição de seus atributos no mundo ocidental, especialmente em comerciais de moda e cosméticos. Vale dizer que a palavra gravidez, em persa, significa a um só tempo a gestação de um filho e a energia estática presente na natureza, sinalizando, quem sabe, simultaneamente a constante transformação pela qual passa a mulher ao longo da vida – da infância ao período de fertilidade – e que também atravessa na contemporaneidade na esteira dos movimentos feministas disseminados ao longo do século XX; por outro lado, a imagem da ninfeta que constitui a série aparece congelada, pois que extraída dos fotogramas roubados pelo artista dos rolos de filme que encontra ao longo de sua jornada, apontando talvez para o estado de imutabilidade da condição feminina no atual Irã.
Na série em exposição em seu ateliê “Lutadores”, Ali exibe imagens de lutadores iranianos – o esporte nacional por excelência – em sequências narrativas que forja a partir da reordenação de stills das antigas películas por ele colecionadas. Aqui, o artista promove um verdadeiro embate entre a tradição machista e esportiva do Irã e a sexualidade ou homossexualidade reprimida pelo regime teocrático. Num tour de force que curiosamente faz lembrar os expedientes usados pelo artista brasileiro Alair Gomes, Ali estabelece uma tensão sexual entre os lutadores, manifestada apenas de forma latente nas filmagens originais.
Já Farnaz Jahanbin faz uso de banners – este material plástico que reveste a publicidade nas ruas de toda e qualquer cidade ao redor do globo – para reproduzir imagens emblemáticas da história antiga e moderna do Irã na série “Palavras Não Ditas”, fazendo sobre eles intervenções em pintura com a milenar caligrafia daquele país, aproximando-se assim, paradoxalmente, da street art produzida no ocidente. Numa das obras, entrevemos o monumento erguido pelo Xá em uma das principais praças de Teerã, e noutro, um antiquíssimo conjunto de desenhos representativo da história persa pré-islamismo. Vale lembrar que os iranianos, antigos persas, não são árabes e tampouco eram islâmicos em seu passado remoto.
Embora situado no Oriente Medio, o Irã experimentou uma historia diversa, ainda que imbricada com a de seus vizinhos árabes. Enquanto o mundo árabe vem lidando com conflitos bélicos constantes, desde o fim da guerra Irã-Iraque, o país enfrenta não exatamente o drama da guerra, mas de um pesado regime teocrático que impõe ao povo persa os dogmas do islamismo. Artistas, portanto, se veem obrigados a enfrentar o regime através do sutil e engenhoso exercício critico, quando não se veem obrigados a se autocensurar devido ao risco das sinistras repercussões que sua rebeldia possa acarretar. Em que pese o brutal isolamento político e cultural que caracteriza a vida no Irã, decorrência direta do regime teocrático e do fundamentalismo religioso, os artistas iranianos atualmente logram estabelecer contato com o mundo ocidental especialmente através da internet, ferramenta essencial à sua formação cultural e à familiarização com a história da arte produzida em outros cantos do mundo. Na ausência de escolas e críticos locais capazes de por em perspectiva a produção artística desenvolvida após os anos de 1980 nos países cêntricos, eles se apropriam do cânone ocidental no afã de digerir a história recente e acessar públicos e realidades que lhes escapam devido ao isolamento imposto em seu país de origem. Este isolamento, costumeiramente, suprime toda e qualquer forma de apoio a circulação e divulgação de seus trabalhos, ao passo em que também desautoriza sumariamente a publicação de suas obras mediante a eventual inclusão de seus nomes em uma lista negra promovida pelo ironicamente nomeado Ministerio do Esclarecimento, órgão equivalente ao nosso Ministerio da Cultura.
As narrativas que ganham corpo e forma em suas obras são permeadas por saltos cronológicos ou espaciais, alinhavando realidades sublimadas pela historia oficial, preservadas tão somente pela tradição, pela memoria oral e pela obstinação de alguns em resgatar informações banidas do imaginário coletivo. Movendo-se entre o passado e o presente, e acionando o futuro através das brechas articuladas pelo discurso artístico contemporâneo, esses artistas desenvolvem suas praticas criativas em exercício constante de revisão de sua própria iconografia relacionando-a àquela produzida no Ocidente.