Karen Kraven vive e trabalha em Montreal, Canadá. É representada pela galeria Parisian Laundry. Já expôs no ICA do Maine College of Art, Portland, ME (2015); na Darling Foundry, em Montreal (2014) e na Mercer Union, em Toronto. Suas obras têm sido comissionadas pelo Canadian Council for the Arts, Quebec Council for the Arts e pela Fundação Dale & Nick Tedeschi.
Para a sua prática artística, Karen busca inspiração nas roupas e acessórios usados por atletas e espectadores que circundam, por exemplo, um jogo de basquete. A textura brilhante dos uniformes dos jogadores, o movimento ritualístico do público acenando com seus cachecóis, ou o padrão moiré revelado na figura do mestre de cerimônias e sua camisa listrada, têm atraído a atenção da artista, que compara este universo ao da Comedia del Arte. Aqui, entra a figura do arlequim, cuja função era a de divertir o público durante os intervalos dos espetáculos. Sua importância foi gradativamente afirmando-se, e o seu traje, feito de retalhos multicoloridos (geralmente em forma de losango), destacava a sua presença ainda mais em cena. No esporte, o traje e a vestimenta também estão claramente concebidos para este fim, o que também aproxima os participantes destes eventos esportivos da figura de uma “ave-de-paraíso”, ora em destaque, ora camuflada, como numa revoada em bando. Tais marcações “chamativas” enfatizam a velocidade e o movimento dos corpos, enquanto, potencialmente, servem também para distrair a atenção de um adversário.
No desenvolvimento atual do seu trabalho, Karen tem elaborado redes de pesca artesanais e fotografado roupas esportivas e tecidos de elastano esticados sobre esculturas corpóreas fracionadas. Também tem desenvolvido esculturas a partir de uniformes de ginástica e chapéus de senhoras que frequentam corridas de cavalo. O interesse da artista está na política de gênero das roupas esportivas e a sexualidade latente embutida no ocultamento dos corpos pelos uniformes, na oposição apertado x solto e o quanto os tecidos e o vestuário em si são vistos como uma segunda pele.
A sua pesquisa recente está focada no vestuário esportivo desenvolvido no início do século XX pela artista construtivista russa Varvara Stepanova. Nesta seara do design têxtil, Stepanova explorou ao máximo as linhas e formas geométricas, o que fez com que o movimento e a aparência dos corpos ganhassem contornos abstratos e exagerados. Além desta, Karen também tem pesquisado o trabalho da estilista italiana Elsa Schiaparelli e a sua relação com a arte dos cubistas e surrealistas.
Após uma convocatória conduzida pela instituição canadense Diagonale (com o suporte do Le Conseil des Arts, de Montreal, em parceria com a Despina | Largo das Artes), Karen foi selecionada e comissionada para participar do nosso programa de residências. Durante o período em que esteve no Rio de Janeiro, a artista investigou a história do design têxtil no Brasil e a utilização de materiais reciclados em produtos artesanais, como tapetes e bolsas. Karen também explorou a região comercial da SAARA (que circunda o Largo das Artes, no centro histórico da cidade) e adquiriu uma variedade de tecidos que foram, posteriormente, combinados em relevos escultóricos.
Mais informações: http://www.karenkraven.com/
Texto curatorial
por Bernardo José de Souza
O repertório imagético e os elementos da cultura material que constituem a trama simbólica de nossa civilização (ocidental), servem como ponto de partida para o processo investigativo proposto por Karen Kraven. Ao debruçar-se sobre objetos e imagens que gozam de status distintos na cadeia produtiva pautada pelo trabalho, pelo laser e pelo consumo, a artista constrói uma rede semântica altamente instável, da qual emergem padrões estéticos investidos de forte carga política, uma vez que escondem sob superfícies plásticas suas memórias e acepções passadas, ou mesmo primordiais. Neste contexto de volatilidade semântica, o corpo desempenha o papel de articulador de forças simbólicas em permanente tensão, suspensas no espaço, as quais destituem a forma do conteúdo ou mesmo investem renovado sentido em objetos agora inertes, aparentemente desprovidos de sua potência icônica uma vez que esvaziados da vida que anteriormente os engendrou.
A capacidade de representação de uma dada imagem ou objeto é posta em xeque por Kraven à medida em que a artista silencia a dinâmica e a urgência do consumo através das arquiteturas institucionais que passa a ocupar. A “galeria” tanto pode neutralizar o bem de consumo quanto enaltecer o caráter mercadológico da obra de arte, funcionando, então, como uma espécie de dispositivo para exercício crítico de mão dupla, quer seja ao mercado ou mesmo à produção artística. A arquitetura expositiva torna-se, para a artista, arena onde convivem elementos que ora se relacionam por afinidade, ora por antagonismo, tensionando a tridimensionalidade do espaço e propondo associações semióticas que ganham corpo no plano imaterial das ideias e na fluidez do capitalismo pós-industrial. A indumentária e a moda são vetores ativados pelo corpo humano e que ganham expressão simbólica mediante a articulação de elementos biológicos e culturais.
Ao serem exibidos pela artista como formas isoladas, não preenchidas pelo corpo humano ou ativadas pela atividade humana, ou mesmo deslocados de seu contexto habitual, operam como fantasmagorias, vestígios de uma vida já inexistente. Assim, acabam por funcionar como achados arqueológicos, índices de uma cultura morta, ultrapassada, superada. Tornam-se, portanto, próteses, acessórios, objetos virtuais, os quais constituem fisicamente, no espaço, um panteão da memória ocidental, da sociedade do consumo, da exaustão icônica à qual estão submetidos os elementos da cadeia produtiva vinculada a um uso e valor que nos remetem a um dado momento no tempo, a um dado lugar no espaço. A memória de um bem de consumo traz em si a violência do processo histórico. A obra de arte aciona em sua potência semântica as diversas camadas de sentido que o tempo e o espaço a ela atribuem.
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