Esta mostra é resultado de um programa de residências subsidiado que visa apoiar o desenvolvimento das práticas de artistas locais. Nossos agradecimentos aos curadores Bernardo José de Souza, Guilherme Altmayer, Leno Veras e Victor Gorgulho que colaboraram nesta primeira edição.
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Tempo Presente
É frente ao horror de 350 anos de escravidão no Brasil – reiterado cotidianamente a dias de hoje no extermínio da população negra pela necropolítica do estado – que as artistas Diambe da Silva e Tadáskía propõem, em levante de força decolonial, revisitar a prática das cartes de visite a partir de exercícios coletivos de autorrepresentação de corpas negrxs: o Estúdio Presente Léxico.
Em meados século XIX, com o advento da tecnologia fotográfica e sua reprodutibilidade técnica, surgiu no contexto da alta burguesia francesa a prática de troca das “cartes de visite”.
Estas ampliações retratavam membros de famílias abastadas o suficiente para contratar profissionais fotográficos em suas residências, fundamentais para a imagem pública das elites parisinas. A feitura destes cartões de visita eram publicitadas como serviços exclusivos, “oportunidade de distribuir você mesmo entre seus amigos, para que eles vejam sua melhor postura e expressão”.
Os registros se davam em estúdios que contavam com cenários cuidadosamente preparados para encenar os costumes de uma classe econômica específica, revelando o status social destes modelos. Sobre suporte de cartões de papel e identificadas com brasões e assinaturas, tais fotografias eram também remetidas via postal; um sistema simbólico de autorepresentações em nitrato de prata.
Os cartões de visita logo tornaram-se objetos de colecionismo, sendo organizados em álbuns de perfis que enredavam uma sorte de rede social destinada ao acesso de poucos. No Brasil, as cartes de visite foram muito bem recebidas pela aristocracia escravagista branca, bem como outras práticas imagéticas europeias que desejava emular a branquitude tropical.
Logo o veloz desenvolvimento das práticas fotográficas no Rio de Janeiro ocupou-se de eternizar os membros das famílias tradicionais brasileiras junto às suas tradições e propriedades, dentre as quais encontravam-se pessoas negras escravizadas, que ditas “parte da família”, eram retratadas de forma involuntária, sempre em condição, situação e/ou posição desumana.
Em alguns destes cartões de visita aqui revelados, vemos bebês brancos posados sobre os colos de mulheres negras: enquanto os pequeninos rebentos tinham seu longilíneos sobrenomes devidamente documentados nos versos, suas cuidadoras não eram nomeadas, apenas descritas como amas de leite – é bastante comum a descrição dessas pessoas somente pela função laboral.
Estas fotografias são, portanto, mais uma sórdida espécie de prova material das violências do olhar branco sobre corpos negros, reiteradamente objetificado num Rio de Janeiro que, em 1860, já era composto por 266 mil habitantes, sendo que 110 mil destes eram pessoas escravizadas – a maior concentração urbana de trabalhadores escravizados desde o fim do império romano.
No gesto operado por Diambe e Tadáskía, perante a herança de uma dívida impagável, dispõe-se uma instalação a partir da qual pessoas negras possam criar e se apropriar de seus próprios cartões de visita. Por meio da práticas de montação, enredam-se diálogos entre performances vogue e indumentárias afrofuturistas; língua yorubá e poses de Akinola Davies Jr, no Instagram; retratos de Seydou Keita, em Mali, e paisagens que a artista Laís Amaral, do Ateliê Trovoa em Niterói, criou como cenário para tombamentos.
Os primeiros frutos do estúdio estão expostos nesta mostra, como documentos e monumentos, na forma de três cartões de visita em grande formato, fotografadas por Clarissa Ribeiro e Mariana Cavalcanti, nas quais os artistas passam as faixas para seus convidades e pares – Aline Besouro, Crioula Criola, Sabine Passareli, Jandir Jr, Rainha Timbuca e Jo Vieira – que, reunidas em duplas, conformam os títulos OPEN GATES, inglês para “abre caminhos”; GESTO SIMPLE, castelhano para “gesto simples”; e AYÉ TUN TUN, yorubá para “novo mundo”.
O convite para posar convocou os corpos negros à colaboração, com ajuda de custos levantada via financiamento coletivo, sugerindo que todes compareçam com sua “roupa de sair”, nas cores vermelho, amarelo, verde, bege ou preto e adereços de sua preferência (calçados foram descartados da composição, no intento de anular marcações de classe, historicamente definidas pelo uso de sapatos, inacessíveis a pessoas escravizadas, reconhecidas por seus pés).
As ações, e suas ativações, desenvolvidas pelas artistas Diambe e Tadáskía nesta individual coletivizada reclamam o desenho de seu próprio imaginário e a escrita de sua própria história por meio de gestos simples, mas que abrem caminhos para novos mundos.
Guilherme Altmayer e Leno Veras
curadores
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Sobre as artistas
Diambe e Tadáskía vivem e trabalham no Rio de Janeiro. Suas pesquisas partem de narrativas invisibilizadas para afirmar memórias coletivas por meio de fotografias, textos e ações, no interesse de lidar com representações no campo social e estético. Durante residência na Despina, a dupla reuniu alguns desdobramentos de suas intervenções urbanas, no sentido de trazer a uma outra escala as situações geográficas, poéticas e políticas que, em seus procedimentos, projetam melhores condições de vida e de trabalho em uma sociedade estruturalmente colonial. Por meio da conjugação entre passado e futuro e partindo da relação com pessoas, territórios e saberes, as artistas buscam processos visuais como ferramentas para criar práticas compartilhadas.
Diambe da Silva (1993) é artista, cineasta e escritora. Formado pela Escola de Comunicação da UFRJ / Rádio e TV em acordo internacional com a Université Sorbonne Nouvelle UFR Arts et Médias. Seus trabalhos atuais são a colaboração na Residência Anarca Filmes (2018), no Espaço Saracvra; o fotolivro Livro-poeira (2018), como desdobramento do documentário experimental A poeira não quer sair do Esqueleto (2018), dirigido junto com Tadáskia e financiado pela Secretaria de Cultura do Rio de Janeiro e Fundação Cesgranrio; e a ação 13+17 (2018) em parceria com Felipe Ferreira, Guilherme Altmayer, Maíra Barillo, Pâmella Liz e Rodrigo D’Alcântara, em exposição no Galpão Bela Maré. Pesquisa atualmente elementos da comunicação visual em relação à diáspora negra brasileira, em acervos públicos e privados, e desenvolve ações em torno de memórias coletivas.
Mais informações
http://cargocollective.com/diambe
Tadáskía (1993) é artista com desenvolvimento em linguagens das Artes Visuais e da Educação. Integra o Projeto Experiências Indiciais/UERJ, pelo qual realizou a produção executiva do seminário e mostra Entre a natureza e o artifício (2017-2018) do PPGArtes/UERJ; e pesquisa Educação e Culturas das Periferias pelo Instituto Maria e João Aleixo (2018). Organizou com Diambe da Silva e com Lorran Dias a Semana Cinerama, mostra independente de cinema e videoarte com colaboração da UFRJ, UERJ, Université Toulouse 2 e Centros Culturais no Rio de Janeiro, em 2016 e em 2017. Seu trabalho investiga histórias em acervos, situações geográficas e relações materiais/imateriais com pessoas e objetos, sobretudo referindo-se às memórias negras diaspóricas e familiares.
Mais informações
https://tadaskia.wixsite.com/portfolio
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Serviço
Exposição: Cartões de Revisita
Artistas: Diambe da Silva e Tadáskía
Período: De 22.03 a 29.03.2019
Onde: Despina (Rua do Senado, 271 – Centro)
Horário: das 10 às 19 horas
Entrada gratuita
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Galeria de fotos (navegue pelas setas na horizontal)